problema de identidade

Peter Lorre em "M" (1931), de Fritz Lang

Peter Lorre em “M” (1931), de Fritz Lang

A associação dos meus nomes próprios é relativamente rara. Durante os meus primeiros anos escolares, naquele período da vida em que os prenomes subjugam os sobrenomes, sentia-me feliz por ser distinto da catrefada de Paulo Jorge e Paulo Sérgio que povoavam as minhas turmas. Mais tarde, quando o apelido passou a ter importância, perdi rapidamente o estado de graça provocado pela “singularidade” nominal. Tornei-me adulto à sombra de um Paulo Morais produtor de televisão e de um Paulo Morais guarda-redes de futebol que chegou a defender as cores da seleção portuguesa. Pela amostra, concluí que haveria uma catadupa de Paulo Morais; mas mesmo assim não estava preparado para ter de “mudar” de nome quando preenchi os formulários da carteira de jornalista. Na lista de nomes profissionais já havia um Paulo Morais. Foi nessa altura que, lembrado de como era “único” nas minhas turmas, saquei do meu segundo prenome para me diferenciar. O “M.” surgiu no meio. E lá ficou, como se fosse a marca nas costas de Peter Lorre, no filme de Fritz Lang.

Sem esse “M.” continuo a viver um problema de identidade. As confusões amontoam-se. Vais estar no “5 para a meia-noite”? Não, esclareço, quem vai à televisão é o Paulo Morais figura pública que costuma falar sobre corrupção. Enviam-me pedidos de amizade e mensagens no Facebook com o pressuposto de eu ser o Paulo Morais chefe de cozinha especializado em cozinha asiática. Equivocam-se ao mandar para o meu endereço eletrónico um email a tratar-me por Doutor Paulo Morais e a referir que está pronto o DVD onde consta a minha participação num simpósio internacional sobre reconstrução uretral…

Numa das reuniões prévias à edição do romance «Revolução Paraíso» perguntaram-me qual seria o meu nome autoral. Respondi que ainda não sabia. Estava cheio de dúvidas, talvez por não querer encarar o óbvio, e acabei por efetuar um pequeno inquérito a amigos. Entre as várias hipóteses de nomes que coloquei a votação havia um “Paulo de Morais” que contentaria a minha avó paterna («Nunca usas o ‘de’ porquê?!»), embora na altura não soubesse que esse era o nome autoral do meu homónimo anticorrupção. Havia um “P. M. Morais” que rebuscava influências de nomes de escritores britânicos e norte-americanos, embora me tivesse escapado a associação imediata de PM com primeiro-ministro. Havia até uma versão em que prescindia do ‘M.’ e adicionava o meu segundo prenome por inteiro. Os votos recebidos acabaram dispersos pelas várias hipóteses e, durante algum tempo, ainda vivi numa dualidade nominal (um para o jornalista, outro para o autor). Até que, um dia, assumi o Paulo M. Morais como a minha assinatura comum.

Nesse dia voltei a sentir-me único, como se estivesse novamente no meio de uma multidão de Paulo Jorge e Paulo Sérgio. Mas nunca se recupera a felicidade ingénua da infância. E foi durante as pesquisas para um novo livro que encontrei, num memorial virtual, o meu homólogo mais arrepiante e perturbador: um Paul M. Morais, nascido nos Açores, emigrado para a América, camionista de profissão, falecido em 2009. Tinha 31 anos de idade.

Desde então que, a cada vez que tenho de criar uma personagem de ficção, me ponho a questionar sobre se o nosso nome também não determinará, de certa maneira, a nossa vida. Desde então que procuro que os meus personagens não sofram do mesmo problema de identidade, tentando por isso atribuir-lhes nomes estranhos, inusuais, singulares. Desde então que nunca mais consegui deixar de pensar que aquele “M.” emigrado poderia ter sido eu. E sinto que um dia, se puder, se conseguir, se tiver a oportunidade, hei de partir à descoberta de quem foi o Paul. O Paul com o ‘M.’ pelo meio. O mesmo ‘M.’ que eu, iludido, pensava que me tinha tornado novamente único e especial.

Sobre paulommorais

Escrevo romances, textos, fragmentos. Antes e depois da escrita, leio. Gasto muitas noites com filmes. Nos entretanto, divago sobre novas personagens com histórias por contar.
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4 respostas a problema de identidade

  1. Morrighan diz:

    Adoro mesmo ler-te :)

    • deves ser a única que cá vem, eh eh. se daqui a 20 anos houver clube de fãs, ficas com o cartão n.º 1. ou nessa altura, sendo tu uma escritora, passas-me é um cartão do teu clube ;)

  2. Paulo, eu também gostei. Candidata ao cartão nº. 2… :)

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