compro o que é nosso: menos literatura [tomo 1]

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“Os portugueses sempre acharam que o que vem de fora é melhor. Muito público lê em português com relutância e é especialmente duro com novos autores.” Uma escritora também a dar os primeiros passos disse-me esta frase no culminar duma conversa eletrónica. Pôs-me a pensar. Será esta generalização uma verdade? Será a literatura uma espécie de aldeia gaulesa, isolada do movimento de prezar o genuinamente português?

Nos últimos anos, por várias razões, criaram-se marcas (“Made in Portugal”), slogans (“Vá para fora cá dentro”) e negócios que procuram exaltar aquilo que Portugal tem e produz. O conceito adapta-se a tudo: sabonetes, artesanato, vestuário, gastronomia, moda, vinho, calçado… A iniciativa da Associação Empresarial Portuguesa (que teve seguimento no “Portugal: a minha primeira escolha”) justifica-se assim: “Porque os Produtos Portugueses nos ligam e nos tocam. São feitos por nós e para nós. E assim é possível consolidar postos de trabalho, aumentar o Produto Interno Bruto, reforçar a capacidade de modernização e internacionalização das nossas empresas, melhorar o nível de vida dos portugueses, dinamizar a economia nacional. E é também assim que se mostra o orgulho do que se faz em Portugal.”

Esta linha orientadora corre o risco de soar como uma onda de nacionalismo bacoco – e até passadista – caso defenda a primazia do que é português apenas e só por essa razão. No entanto, parece-me que o principal objetivo é demonstrar, até aos mais céticos, que também sabemos fazer bem, seja um tapete bordado ou um pastel de nata. Esta dinâmica que visa alertar os consumidores para a qualidade dos produtos fabricados em Portugal, entretanto, contaminou outras áreas. Num mundo cada vez mais globalizado, o reencontro com o nosso património – natural e edificado, cultural e etnográfico – assume especial relevância. Ganha-se um novo olhar para as nossas raízes, sem medo de se parecer simplório e de vistas curtas. É assim, por exemplo, que se revisita o fado em abordagens inovadoras que, em simultâneo, servem para enaltecer a riqueza do fado tradicional.

Na cultura, mesmo com algumas resistências e ódios de estimação, encontra-se a mesma predisposição para promover e acarinhar os nossos músicos, atores, pintores, escultores. E quanto à literatura? Aos livros? Alto lá, também não exageremos! Aí, se calhar, é melhor não arriscar e optar por comprar os autores estrangeiros. Ou então, a comprar português, pelo menos que sejam livros de escritores mediáticos. Sempre são pessoas conhecidas.

Um aluno de um mini curso de escrita criativa em que participei, quando indagado sobre os seus hábitos de leitura, respondeu alto e bom som: “Não vale a pena perder tempo a ler escritores portugueses.” Mesmo que uma andorinha não desfaça a primavera, vejo-me a ter de concordar com a ideia de que a generalidade dos leitores torce o nariz aos autores portugueses clássicos e olha com desdém os novos autores portugueses. E é num contexto em que os cidadãos do nosso país estão mais despertos e predispostos para o “produto nacional” que, ao entrarmos numa livraria, continuamos a ser literalmente inundados por uma catadupa de novos títulos assinados por nomes estrangeiros. Perdidos nessa multidão de livros internacionais que preenchem vitrinas e estantes, lá encontramos um punhado de autores portugueses. Para os novos, a oportunidade de crescerem cola-se à necessidade de serem um sucesso imediato; para os clássicos, a sobrevivência cola-se à fidelidade dos leitores habituais.

À partida, a literatura deveria ser um dos expoentes do “compro o que é nosso”: temos uma língua falada em vários continentes; e até já temos um Nobel para servir de bandeira. Mas não. Apetece perguntar: a que se deve este descrédito, esta falta de fé nos autores portugueses? Uma questão de qualidade? Uma questão de rentabilidade? Uma questão de tradição? Como se explica este aparente desfasamento em relação a outras áreas do consumo e da cultura? Será que no imenso universo de escritores que usam a língua portuguesa não haverá material suficiente, em interesse e qualidade, para que a lusofonia seja a marca dominante no nosso mercado livreiro? Será que existe, afinal, uma distância assim tão grande entre o que o escritor português escreve e aquilo que o leitor português quer ler?

[já se sabe que “ler português” cansa; o tomo 2 deste texto fica, portanto, para a semana]

Sobre paulommorais

Escrevo romances, textos, fragmentos. Antes e depois da escrita, leio. Gasto muitas noites com filmes. Nos entretanto, divago sobre novas personagens com histórias por contar.
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7 respostas a compro o que é nosso: menos literatura [tomo 1]

  1. Helga Rosa diz:

    Sem dúvida que a cultura imposta pelas livrarias não ajuda.Na adolescência temos os livros de “Uma aventura”, “Triangulo Jota”, entre outros, que mostram que temos livros bons, mas o salto para a literatura adulta ainda é dificil, porque só literatura clássica, ou nomes como Margarida Rebelo Pinto ou Miguel sousa Tavares têm destaques nas nossas livrarias…

    Por mim falo, eu tenho a sorte de ter conhecido alguns escritores através da net, e graças a um deles, a minha leitura de livros de “Portugal” aumentou exponencialmente, de nenhum já li un 6-8 este ano… Mas para saber e conhecer livros de “Portugal” se não for na net, nos blogues de livros, o que se vê em lojas, nem sempre é bom e nem sempre é o estilo que a pessoa gosta. Tenho muita pena, deveria haver uma zona especifica e bem visivel de produtos nossos… mas os livros, continuam a ter muita fama os estrangeiros, dos portugueses… nem vê-los :-(

    • Helga. por incrível que pareça, ainda temos um longo caminho pela frente neste campo. mas o positivo é que todos podemos dar o nosso contributo, mesmo que pequeno. a coisa, a ir, é mesmo livro a livro.

  2. Maria de Fátima Gouveia diz:

    Na minha opinião o mal está na resistência que certas editoras e livrarias fazem aos escritores portugueses, em especial aos novos. Um exemplo disso é haver atualmente uma edição desenfreada de obras de autores desconhecidos, muitas de excelente qualidade, mas as suas editoras empenham-se em publicitar as oras dos autores estrangeiros ou as de portugueses já amplamente conhecidos, por razões comerciais.
    Não raras vezes somos induzidos a adquirir obras por culpa de uma publicidade agressiva, para no final darmos por mal empregado o dinheiro gasto. Uma desilusão total face ao alarde que se fez à volta desse livro, enquanto que, muitos autores desconhecidos morrem desconhecidos pelo facto das suas obras manterem-se escondidas nas prateleiras, sem que alguém lhes possa pôr a vista em cima.
    Aponto a culpa ao monopólio das grandes livrarias e das grandes editoras que inclusive, sufocam as suas concorrentes mais pequenas, não deixando margem para elas exporem e divulgarem os seus autores.
    O lucro e só o lucro, apenas ele importa.
    Eu consumo tudo o que é português, incluindo a literatura!

    Maria de Fátima Gouveia

  3. e obrigado por consumir literatura portuguesa, Maria de Fátima! a questão é que não existe uma vaga de fundo nem uma espécie de sensação generalizada que diga aos editores e aos livreiros que talvez valha a pena apostar mais nos autores portugueses (também nos outros, desde os estreantes aos que não são mediáticos). isso tem acontecido em várias áreas. veja-se a consciência ambiental que leva empresas a delinearem políticas nessa área. ou a questão da responsabilidade social. ou a dos produtos alimentares onde se sabe que cada vez mais consumidores querem comprar produto local. mas no livro parece que está tudo como deve estar e, portanto, pouco muda. aliás, com a crise a situação até tenderá a piorar. mas esperemos que seja possível mudar de rumo.

  4. Neuza Dias diz:

    Confesso. Num ano inteiro sou capaz de ler 1, 2 autores portugueses no máximo. E nem sei explicar bem porquê. A questão da livraria é mesmo tal e qual como disse. Entro numa livraria e os autores nacionais estão tão mas tão mal representados que passo pela secção a correr, em direcção a capas mais coloridas e apelativas. Em direcção a nomes que me dão uma certa segurança. Os poucos livros que li de autores portugueses, nos últimos 3 anos. foram um risco autêntico, porque não conhecia nada deles! Fiquei fã claro, mas o problema persiste.
    Olho para um livro de um autor português e só me lembro dos clássicos portugueses, e da forma como amei alguns e odiei outros. Simplesmente não quero arriscar. Erro meu eu sei, mas custa-me muito arriscar num livro que posso vir a odiar, e não que isso não aconteça com autores estrangeiros, mas inconscientemente sinto que o risco é menor.
    Ler mais aquilo que é nacional é algo que tenho-me esforçado por mudar mas que ainda tem um longo percurso a fazer, especialmente na minha cabeça.

    • Neuza: o seu testemunho é paradigmático. mas atenção: não é nenhum erro ou culpa sua. é uma questão de base, de fundo, que vem de trás, até da escola, e que custa a contrariar. é óbvio que com a crise há cada vez menos espaço para arriscar no que se desconhece. é perfeitamente normal que assim seja. esta questão do autor português vai levar tempo a mudar. é preciso uma união entre todos os que participam no mundo do livro, que não será fácil de conseguir.
      uma opção de arriscar mais sem custos pode ser ir testar alguns escritores portugueses nas bibliotecas públicas. pode ser que encontre mais alguns ao seu gosto que depois também já possa procurar nas livrarias.
      mas nunca se martirize com a questão. a Neuza faz parte dos que lêem livros e só isso já é fantástico. o resto poderá vir por acréscimo, se tudo se alinhar em determinado caminho. apesar das dificuldades, eu acredito que seja possível.
      um abraço

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